O ex-presidente segura a Taça da Fifa durante evento em Zurique, na Suíça, onde foi anunciado que a Copa do Mundo de 2010 aconteceria na África do Sul
Primeiro
presidente negro da África do Sul (1994-99), Nelson Mandela passou 27 anos
preso por se opor ao apartheid sul-africano.
Leia
abaixo a íntegra do discurso que ele fez em defesa própria perante um tribunal
em Pretória, em 1962.
Mandela
morreu nesta quinta-feira, aos 95 anos, em sua casa em Johannesburgo.
"Meritíssimo,
antes de me pronunciar sobre a acusação, há um ou dois pontos que eu gostaria
de mencionar.
Primeiro,
o meritíssimo recordará que a questão foi adiada a meu pedido da última
segunda-feira até hoje, para permitir que meu defensor se organizasse para
comparecer hoje. Ainda que agora eu tenha acesso a um defensor, depois de
consulta com ele e meus advogados decidi conduzir minha defesa pessoalmente.
Em algum momento ao
longo deste processo, espero poder indicar que o caso representa um julgamento
quanto às aspirações do povo africano, e por isso considerei apropriado
conduzir pessoalmente minha defesa. Mesmo assim, mantive os serviços de meu
defensor, que me acompanhará ao longo do julgamento, e gostaria que meu
advogado estivesse disponível também; isso considerado, conduzirei minha defesa
pessoalmente.
O segundo ponto que eu
gostaria de mencionar é uma solicitação dirigida ao meritíssimo juiz. Para
começar, gostaria de deixar perfeitamente claro que as declarações que vou
fazer não se dirigem ao meritíssimo em modo pessoal, e tampouco pretendem
contestar a integridade do tribunal. Respeito profundamente o meritíssimo juiz
e em momento algum questiono seu senso de equanimidade e justiça. Devo também
mencionar que nada do que mencionarei nessa solicitação deve ser entendido como
menção pessoal ao promotor.
O ponto que desejo
mencionar em meu argumento não se baseia em considerações pessoais, mas em
questões importantes que vão além do escopo do julgamento atual. Também
gostaria de mencionar que, no curso dessa solicitação, me referirei
frequentemente ao homem branco e aos brancos em geral.
Quero deixar claro que
não sou racialista e detesto racialismo, porque o encaro como algo bárbaro,
quer proveniente de um negro, quer de um branco. A terminologia que empregarei
é forçosa dada a natureza da solicitação que estou fazendo.
Quero solicitar que o
meritíssimo juiz se afaste do caso. Contesto o direito deste tribunal de julgar
meu caso, por dois motivos.
Primeiro, eu o contesto
porque temo que não receberei julgamento justo e correto. Segundo, não me
considero legal ou moralmente sujeito a obedecer leis criadas por um Parlamento
no qual não tenho representação.
Em um julgamento
político como este, que envolve um confronto entre as aspirações do povo
africano e as dos brancos, os tribunais do país, tais como atualmente
constituídos, não podem ser imparciais e justos.
Em casos como esse, os
brancos são parte interessada. Ter um funcionário branco do Judiciário
presidindo ao julgamento, por mais que eu o tenha em alta estima, e por mais
justo e equânime que ele seja, é dar a um branco o papel de juiz em um caso branco.
É impróprio e uma
violação de um princípio elementar de justiça confiar aos brancos o julgamento
de casos que envolvem a negação por eles dos direitos humanos básicos do povo
africano.
Que forma de justiça
permite que a parte injuriada presida ao julgamento daqueles contra os quais
ela move acusações?
Um Judiciário
controlado inteiramente pelos brancos e aplicando leis criadas por um
Parlamento branco no qual os africanos não têm representação - leis que na
maioria dos casos foram aprovadas diante da oposição unânime dos africanos...
(Magistrado): Imagino
se devo interferir já neste momento em sua solicitação, senhor Mandela. Não
estamos indo além do escopo do julgamento? Afinal, só existe um tribunal hoje,
e é o tribunal dos brancos. Não existe outro tribunal. A que propósito serve o
senhor fazer essa solicitação quando só existe um tribunal, como o senhor bem
sabe? Por que tribunal o senhor gostaria de ser julgado?
(Mandela): Bem,
meritíssimo, primeiro gostaria que o senhor tivesse em mente que em diversos
casos nossos tribunais estabeleceram que o direito do litigante a recusar um
magistrado é um direito extremamente importante, que deve contar com a plena
proteção do tribunal, desde que tal direito seja exercido honestamente. Tenho
apreensões, honestamente, como pretendo demonstrar agora, de que a injusta
discriminação que sofri durante minha vida seja responsável por injustiças
muito graves, e alegarei que a discriminação racial, que fora do tribunal é
responsável pelos meus problemas, dentro dele me submeterá à mesma injustiça. O
meritíssimo juiz pode discordar disso, mas tem todo o direito, e até mesmo a
obrigação, de me ouvir, e por isso sinto que o meritíssimo...
(Magistrado): Eu
gostaria de ouvir, mas primeiro quero que o senhor embase sua solicitação para
que eu me afaste do julgamento.
(Mandela): Bem, são
esses os motivos, eu os estou desenvolvendo, meu senhor. Se o meritíssimo me
der tempo...
(Magistrado): Não quero
me afastar do escopo do julgamento.
(Mandela): Quanto ao
escopo da solicitação, estou dentro do escopo com essa solicitação, porque
estou expondo motivos que, em minha opinião, provavelmente não resultarão em um
julgamento justo e correto para mim.
(Magistrado): Bem,
prossiga.
(Mandela): Se o
meritíssimo assim permite. Eu estava desenvolvendo o ponto de que um Judiciário
inteiramente controlado por brancos e aplicando leis criadas por um Parlamento
branco no qual não temos representação, leis que na maioria dos casos foram
aprovadas diante de oposição unânime dos africanos, não pode ser considerado
como tribunal imparcial em um julgamento político no qual um africano é o réu.
A Declaração Universal
dos Direitos Humanos dispõe que todos os homens são iguais perante a lei e têm
direito a igual proteção da lei, sem discriminação. Em maio de 1951, o Dr. D.
FG. Malan, então primeiro-ministro da África do Sul, declarou ao Parlamento da
União que essa cláusula da declaração se aplicava ao nosso país. Afirmações
semelhantes foram realizadas em diversas ocasiões do passado por muitos brancos
importantes do país, entre os quais juízes e magistrados. Mas a realidade é que
não existe qualquer igualdade perante a lei, no que tange ao nosso povo, e as
declarações em contrário são definitivamente incorretas e enganosas.
É verdade que um
africano que responda a uma acusação diante de um tribunal desfruta, na
superfície, dos mesmos direitos e privilégios de um acusado branco, ao menos no
que tange à condução do julgamento. Ele será submetido às mesmas regras
processuais e evidenciárias que se aplicam a um acusado branco. Mas seria
absurdamente incorreto concluir com base nesse fato que um africano desfruta de
igualdade perante a lei.
Em seu significado
correto, igualdade perante a lei significa o direito de participação na feitura
das leis pelas quais uma pessoa é governada, uma constituição que garanta os
diretos democráticos de todas as seções da população, o direito de buscar proteção
ou compensação junto ao tribunal em casos de violação de direitos garantidos
pela constituição, e o direito de tomar parte na administração da justiça
exercendo as funções de juiz, magistrado, promotor público, consultor jurídico
e postos semelhantes.
Na ausência dessas
salvaguardas, a expressão "igualdade perante a lei" perde todo
significado e é enganosa, ao menos no que tange a nós. Todos os direitos e
privilégios que mencionei são monopólio dos brancos, e não desfrutamos de
nenhum deles.
Os brancos fazem todas
as leis, nos arrastam a seus tribunais e acusam, e se arvoram em juízes contra
nós.
É perfeitamente
admissível e correto mencionar claramente a questão: o que significa essa
barreira de cor na administração da Justiça? Por que, neste tribunal, estou
diante de um magistrado branco, um promotor branco e fui conduzido à sala por
um guarda branco? Alguém poderia sugerir honesta e seriamente que nesse tipo de
atmosfera a balança da justiça é precisa e correta?
Por que nenhum
africano, na história deste país, teve a honra de ser julgado por seus irmãos
de raça, por pessoas de sua carne e de seu sangue?
Direi o motivo ao
meritíssimo juiz: o verdadeiro propósito da rígida separação de cores é
garantir que a justiça ministrada pelos tribunais se conforme à política do
país, por mais que essa política conflite com as normas de justiça aceitas nos
judiciários de todo o mundo civilizado.
Sinto-me oprimido pela
atmosfera de dominação branca que pende sobre esta sala. De alguma forma, essa
atmosfera me traz à memória as desumanas injustiças causadas ao meu povo do
lado de fora do tribunal por essa mesma dominação branca.
Isso me lembra de que
não tenho voto, porque o Parlamento deste país é controlado pelos brancos. Não
tenho terra porque a maioria branca ocupa a parte do leão do meu país e me
força a viver em reservas flageladas pela pobreza, superpovoadas e
superlotadas. Somos vítimas da fome e da doença...
(Magistrado): O que
isso tem a ver com o caso em questão, Sr. Mandela?
(Mandela): Com o último
ponto, senhor, tudo se combina, se o meritíssimo me der chance de
desenvolver...
(Magistrado): O senhor
já está desenvolvendo há algum tempo, a essa altura, e sinto que está indo além
do escopo de sua solicitação.
(Mandela): Meritíssimo,
isso para mim representa uma importante causa que o tribunal deveria levar em
conta.
(Magistrado):
Compreendo plenamente a sua posição, Sr. Mandela, mas é preciso que o senhor se
restrinja à sua solicitação e não vá além dela. Não quero ouvir sobre a fome.
Isso em minha opinião nada tem a ver com o caso em questão no momento.
(Mandela): Bem, o
meritíssimo juiz já mencionou o fato de que neste país só existe um tribunal
branco. Qual é o ponto de minha argumentação? Bem, se eu demonstrar ao
meritíssimo juiz que do lado de fora deste tribunal a discriminação racial foi
usada de maneira a me privar de meus direitos, a me tratar deslealmente,
certamente esse é um fato relevante do qual inferir que, onde quer que haja
discriminação racial, o resultado será o mesmo, e é esse o motivo para que eu
recorra ao argumento em questão.
(Magistrado): Temo que
terei de interrompê-lo, e o senhor terá de se confinar aos motivos, os
verdadeiros motivos, para pedir que eu me afaste.
(Mandela): Meritíssimo,
o próximo ponto que eu gostaria de expor é o seguinte: Minha questão é, como eu
poderia acreditar que a mesma discriminação racial que causou tamanha injustiça
e sofrimento ao longo dos anos operaria agora de forma a me propiciar um
julgamento aberto e livre? Há o perigo de que um acusado africano considere o
tribunal não como uma corte imparcial, fazendo justiça sem medo ou
parcialidade, mas sim como um instrumento usado pelos brancos para punir
aqueles dentre nós que lutam por deixar para trás a fornalha ardente do domínio
branco. Tenho graves temores de que esse sistema de justiça possa permitir que
os culpados levem os inocentes aos tribunais. Ele permite que os injustos
processem e exijam vingança contra os justos. Pode tender a rebaixar os padrões
de equanimidade e justiça aplicados pelas autoridades brancas dos tribunais dos
país aos litigantes negros. Esse é o primeiro fundamento de minha solicitação:
o de que não vou receber julgamento justo e correto.
O segundo motivo para
minha solicitação é que não me considero legal ou moralmente obrigado a obedecer
leis criadas por um Parlamento no qual não estou representado. Que a vontade do
povo é a base da autoridade de um governo é princípio universalmente
reconhecido como sagrado, em todo o mundo civilizado, e constitui uma das
fundações básicas da liberdade e justiça. É compreensível que cidadãos que têm
direito de voto bem como de representação direta nos órgãos governantes do país
estejam moral e legalmente sujeitos às leis que governam o país.
Deveria ser igualmente
compreensível por que nós, africanos, devemos adotar a atitude de que não temos
obrigação moral ou legal de obedecer a leis que não fizemos, e nem se deveria
esperar que confiemos nos tribunais que aplicam essas leis.
Estou ciente de que em
muitos casos de natureza semelhante, no passado, os tribunais sul-africanos
acataram o direito do povo africano de lutar por mudanças democráticas. Algumas
de nossas autoridades judiciais chegaram a criticar abertamente a política que
se recusa a reconhecer que todos os homens nascem livres e iguais, e condenaram
sem medo a negação de oportunidades ao nosso povo.
Mas essas exceções
existem a despeito do, e não por causa do, grotesco sistema de justiça que foi
criado no país. As exceções representam ainda outra prova de que mesmo entre os
brancos do país existem pessoas honestas cujo senso de equanimidade e justiça
se revolta contra as crueldades perpetradas por seus irmãos brancos contra o
nosso povo.
A existência de
genuínos valores democráticos entre alguns dos brancos do Judiciário do país,
por menor que seja essa representação, é algo que recebo positivamente. Mas não
tenho ilusões quanto à importância do fato, ainda que represente um sinal
saudável. Os brancos honestos e dignos como esses são poucos, e certamente não
foram capazes de convencer a vasta maioria do restante da população branca de
que a supremacia branca conduz a perigos e desastres.
No entanto, eu seria um
comandante lastimável caso confiasse para minhas vitórias em alguns poucos
soldados no campo inimigo que simpatizam com a minha causa. Um general
competente deposita sua fé no poder de ataque superior que ele comanda e na
justiça da causa que deve levar adiante, sem hesitar, até o amargo fim.
Odeio a discriminação
racial com toda intensidade, em todas as suas manifestações. Combati contra ela
por toda minha vida; continuo a fazê-lo, e o farei até o fim de meus dias.
Ainda que no momento eu esteja sendo julgado por um homem cuja opinião tenho em
alta estima, detesto violentamente o sistema que me cerca, aqui. Faz-me sentir
que sou um negro no tribunal dos brancos. Isso não deveria acontecer. Eu
deveria me sentir perfeitamente à vontade, e seguro na confiança de que estou
sendo julgado por um compatriota sul-africano que não me encara como inferior e
como alguém que tem direito a uma forma especial de justiça.
Essa não é a verdadeira
atmosfera que pode conduzir a sentimentos de segurança e confiança quanto à
imparcialidade do tribunal.
O tribunal pode rebater
essa porção do meu argumento me garantindo que julgará meu caso justamente e
sem medo ou favorecimento, e que, ao decidir se sou ou não culpado do delito de
que o Estado me acusa, o tribunal não será influenciado pela cor da minha pele
ou qualquer outro motivo indevido.
Pode bem ser que isso
seja fato. Mas uma resposta como essa significaria incompreensão completa
quanto ao ponto central do meu argumento.
Como já indiquei, minha
objeção não se refere à pessoa do meritíssimo juiz, e nem deve ser considerada
como contestação à integridade do tribunal. Minha objeção se baseia no fato de
que nossos tribunais, em sua forma atual, criam graves dúvidas na mente de um
réu africano de que ele receberá julgamento justo e correto.
Essa dúvida deriva de
fatos objetivos relacionados à prática de discriminação injusta contra os
negros, na formação dos tribunais do país. Dúvidas como essas não serão
atenuadas por simples garantias verbais do magistrado que preside ao
julgamento, por mais sinceras que ela sejam. Existe uma maneira, e uma maneira
só, de remover essas dúvidas, a saber, remover a discriminação injusta nas
indicações para postos judiciários. Essa é minha primeira dificuldade.
Tenho ainda outra
dificuldade, quanto a garantias semelhantes que o meritíssimo juiz possa
oferecer. Em termos gerais, os africanos e os brancos deste país não têm um
padrão comum de equanimidade, moralidade e ética, e seria muito difícil
determinar, de minha parte, que padrão de equanimidade e justiça o meritíssimo
juiz teria em mente.
Em seu relacionamento
conosco, os sul-africanos brancos consideram justo e correto seguir políticas
que causam indignação à consciência da humanidade e aos cidadãos honestos e
corretos de todo o mundo civilizado. Eles reprimem nossas aspirações, bloqueiam
nosso caminho para a liberdade e nos negam oportunidades de promover nosso
progresso moral e material a fim de que possamos nos proteger contra o medo e a
carestia.
Todas as boas coisas da
vida estão reservadas aos brancos, e os negros devem se contentar em nutrir
seus corpos com as migalhas de comida que caem das mesas das pessoas de pele
branca. Esse é o padrão de justiça e equanimidade dos brancos. E dele deriva
sua concepção de ética. O que quer que ele diga em sua defesa, o padrão moral
do homem branco neste país deve ser julgado pela vasta servidão e inferioridade
a que a maioria dos habitantes foi condenada.
Nós, por outro lado,
consideramos a luta contra a discriminação de cor e a busca da liberdade e da
felicidade como a mais elevada aspiração de todos os homens. Por amarga
experiência, aprendemos a considerar os brancos como seres humanos ásperos e
impiedosos cujo desprezo por nossos direitos e cuja indiferença pela promoção
de nosso bem estar tornam hipócritas e insignificantes as garantias que nos
oferecem.
Tenho esperança e
confiança em que o meritíssimo juiz não considerará essa objeção com leviandade
e tampouco a encarará como frívola. Decidi falar franca e honestamente porque a
injustiça a que me referi contém as sementes de uma situação extraordinariamente
perigosa para o nosso país e povo. Não faço ameaças quando digo que, a menos
que esses erros sejam remediados sem demora, podemos bem descobrir que falar
com franqueza diante dos tribunais do país será um método excessivamente tímido
para atrair a atenção da nação às nossas demandas.
Por fim, preciso apenas
acrescentar que os tribunais afirmaram que basta provar a possibilidade de
parcialidade, e não a parcialidade em si, em uma solicitação dessa ordem. Nessa
solicitação, limitei-me a me referir a certos fatos objetivos, com base nos
quais submeto que se pode inferir a possibilidade de que eu não receba um
julgamento justo e correto.
(Magistrado): Senhor
promotor, o senhor tem algo a dizer?
(Promotor): Serei
breve, meritíssimo. Desejo apenas apontar que existe base legal para que um
acusado tenha o direito de solicitar que um funcionário do Judiciário se afaste
de um caso no qual ele esteja sendo julgado. Afirmo que a solicitação do
acusado não se baseia em um dos princípios em questão, e solicito que o
tribunal a rejeite.
(Magistrado - para
Mandela): Sua solicitação foi rejeitada. O senhor se pronunciará agora sobre as
acusações?
(Mandela): Pronuncio-me
inocente das duas acusações, e de todas as acusações.
(Entre as testemunhas
estava o Sr. Barnard, secretário pessoal do Dr. H. F. Verwoerd, então
primeiro-ministro da África do Sul. Mandela interrogou a testemunha sobre uma
carta que enviada por ele, Mandela, ao primeiro-ministro exigindo uma convenção
nacional em 1961. Antes de começar, Mandela leu a carta na íntegra:)
"Fui instruído
pelo Conselho Nacional de Ação Africano a comunicar ao seu governo os seguintes
termos:
O Conselho Nacional de
Ação Africano foi estabelecido nos termos de uma resolução aprovada em
conferência realizada em Pietermaritzburg em 25 e 26 de março de 1961.
Participaram da conferência 1,5 mil delegados urbanos e rurais, representando
organizações religiosas, sociais, culturais, esportivas e políticas.
A conferência
reconheceu o fato de que seu governo, depois de para isso receber mandato de
uma parcela da população europeia, decidiu proclamar a república, em 31 de
maio.
A opinião dominante
entre os delegados é a de que o seu governo, que representa apenas uma minoria
da população do país, não tem direito de tomar essa decisão sem primeiro
solicitar as opiniões e obter o expresso consentimento do povo africano. A
conferência teme que sob a proposta república o seu governo, que já é notório
em todo o mundo por suas políticas reprováveis, continue a conduzir ataques
ainda mais selvagens contra os direitos e as condições de vida do povo
africano.
A conferência
considerou cuidadosamente a grave situação política que o povo africano hoje
enfrenta. Delegado após delegado atraiu atenção para a maneira cruel pela qual
seu governo forçou a população de Zeerust, Sekhukhuniland, Pondoland, Nongoma,
Tembuland e outras áreas a aceitar o impopular sistema de autoridades bantu, o
que indica a rápida deterioração das relações raciais no país.
É opinião ponderada da
conferência que essa perigosa situação só poderá ser evitada pela convocação de
uma convenção nacional soberana e representativa de todos os sul-africanos a
fim de debater uma nova constituição não racial e democrática. Uma convenção
como essa discutiria nossos problemas nacionais de maneira sã e sóbria, e
definiria soluções que buscam preservar e salvaguardar os interesses de todas
as seções da população.
A conferência decidiu
unanimemente apelar ao seu governo que convoque uma convenção como essa antes
de 31 de maio.
A conferência também
decidiu que a menos que seu governo convoque a convenção mencionada até a data
acima citada, serão realizadas manifestações nacionais de protesto na véspera
da proclamação da república. A conferência decidiu também que além das
manifestações o povo africano será conclamado a não colaborar com a república.
Seguem anexas as
resoluções da conferência, para sua atenção e para as ações necessárias.
Exigimos agora que o
governo convoque a convenção antes de 31 de maio; caso contrário adotaremos as
medidas indicadas nos parágrafos 8 e 9 acima.
As manifestações serão
conduzidas de forma disciplinada e pacífica.
Estamos plenamente
cientes das implicações dessa decisão e das ações que propomos realizar. Não
temos ilusões sobre as contramedidas que seu governo pode tomar a respeito.
Afinal, a África do Sul e o mundo sabem que, durante os 13 últimos anos, seu
governo nos sujeitou a um domínio impiedoso e arbitrário. Centenas de nossas
pessoas foram banidas e confinadas a certas áreas. Dezenas foram banidas a
regiões distantes do país e muitas foram detidas e encarceradas por diversos
delitos Tornou-se extremamente difícil realizar reuniões e a liberdade de
expressão foi severamente restringida. Durante os últimos 12 meses, passamos
por um período de severa ditadura, durante o qual 75 pessoas foram mortas e
centenas sofreram ferimentos em manifestações pacíficas contra os passes.
Organizações políticas
foram declaradas ilegais e milhares de pessoas foram encarceradas sem
julgamento. Seu governo só pode tomar medidas como essas para reprimir as
manifestações iminentes, e essas medidas não conseguiram deter a oposição às
políticas de seu governo. Não seremos intimidados pelas ameaças de força e
violência feitas pelo senhor e pelo seu governo, e faremos nosso dever sem hesitar".
(Mandela): O senhor se
lembra do conteúdo desta carta?
(Testemunha): Sim.
(Mandela): O senhor
entregou a carta ao primeiro-ministro?
(Testemunha): Sim.
(Mandela): Em que data,
o senhor recorda?
(Testemunha): É difícil
lembrar, mas imagino que na data especificada no carimbo do protocolo de
recepção pelo escritório do primeiro-ministro.
(Mandela): A data é 24
de abril. O primeiro-ministro apresentou alguma resposta à carta? Ele respondeu
à carta?
(Testemunha): Não, ele
não respondeu ao autor.
(Mandela): Ele não
respondeu à carta. O senhor concordaria em que essa carta trata de questões de
interesse vital para a vasta maioria dos cidadãos do país?
(Testemunha): Não
concordo.
(Mandela): O senhor não
concorda? Não concorda que a questão dos direitos humanos, das liberdades
civis, é uma questão de vital importância para o povo africano?
(Testemunha): Sim, isso
é fato, realmente.
(Mandela): Essas coisas
foram mencionadas anteriormente?
(Testemunha): Sim,
creio que sim.
(Mandela): Foram
mencionadas. O senhor concorda em que essa carta trata de questões de vital
importância para o povo africano deste país? O senhor já concordou em que essa
carta trata de questões como direito à liberdade, liberdades civis e assim por
diante.
(Testemunha): Sim, a
carta menciona esses assuntos.
(Mandela): Questões
importantes para qualquer cidadão?
(Testemunha): Sim.
(Mandela): Bem, o
senhor sabe que os africanos não desfrutam dos direitos mencionados nesta
carta. Os direitos de governo lhes são negados?
(Testemunha): Alguns
direitos.
(Mandela): Não há
africanos no Parlamento, certo?
(Testemunha): Correto.
(Mandela): Africanos
não podem ser membros dos conselhos provinciais, dos conselhos municipais?
(Testemunha): Certo.
(Mandela): Os africanos
não podem votar neste país.
(Testemunha): Eles não
podem votar para o Parlamento.
(Mandela): Sim, é disso
que estou falando. Estou falando do Parlamento e dos demais órgãos de governo
do país, dos conselhos provinciais, dos conselhos municipais. Eles não têm
direito de voto?
(Testemunha): Correto.
(Mandela): O senhor
concordaria comigo em que seria altamente escandaloso, em qualquer país
civilizado do mundo, que o primeiro-ministro deixasse de responder a uma carta
que trata de questões vitais que afetam a maioria dos cidadãos do país? O
senhor concordaria com isso?
(Testemunha): Não
concordo.
(Mandela): O senhor não
concorda que seria irregular para um primeiro-ministro ignorar uma carta que
aponta questões vitais e que afetam a vasta maioria dos cidadãos daquele país?
(Testemunha): Esta carta não foi ignorada pelo primeiro-ministro.
(Mandela): Apenas
responda a pergunta. O senhor considera apropriado que o primeiro-ministro não
responda a apelos feitos com relação a questões vitais para uma vasta maioria
dos cidadãos do país? O senhor diz isso não é errado?
(Testemunha): O
primeiro-ministro respondeu à carta.
(Mandela): Senhor
Barnard, não quero ser rude com o senhor. Por favor, limite-se a responder
minhas perguntas. A pergunta que proponho ao senhor é, o senhor concordaria em
que é impróprio da parte de um primeiro-ministro não responder a uma
comunicação que trata de questões vitais e que afetam a vasta maioria do país.
(Testemunha): Não
concordo nesse caso específico, porque...
(Mandela): Como
proposição geral? O senhor consideraria impróprio, em termos gerais, que um
primeiro-ministro não responda a uma carta dessa natureza, ou seja, uma carta
que trata de questões vitais e que afetam a maioria dos cidadãos?
(Promotor): (Intervenção
objetando quanto à linha de interrogatório.)
(Mandela): O senhor diz
que o primeiro-ministro não ignorou a carta?
(Testemunha): Ele não
reconheceu ao autor a recepção da carta.
(Mandela): A carta não
foi ignorada pelo primeiro-ministro?
(Testemunha): Não, não
foi ignorada.
(Mandela): Recebeu a
consideração devida?
(Testemunha): Recebeu,
de fato.
(Mandela): De que
forma?
(Testemunha): De acordo
com os procedimentos usuais, ou seja, o primeiro-ministro encaminha
correspondências ao ministro encarregado, o ministro mais responsável por
aquela carta específica.
(Mandela): A carta foi
encaminhada a outro departamento?
(Testemunha): Correto.
(Mandela): A que
departamento foi encaminhada?
(Testemunha): Ao
Departamento da Justiça.
(Mandela): O senhor
pode explicar por que não fui favorecido com a cortesia de um reconhecimento de
que a carta foi recebida, e não fui informado de que ela havia sido encaminhada
ao departamento adequado para atenção de seu titular?
(Testemunha):
Determinar quando e se uma carta deve ser respondida depende, em muitos casos,
do conteúdo da carta.
(Mandela): Minha
pergunta é, o senhor pode explicar por que não fui favorecido com a cortesia de
um reconhecimento de que a carta foi recebida, pouco importa o que o
primeiro-ministro pretendesse fazer quanto a ela? Por que essa cortesia não me
foi estendida?
(Testemunha): Por causa
do conteúdo da carta.
(Mandela): Entendo.
Esse não é o tipo de coisa a que o primeiro-ministro consideraria responder, em
qualquer momento?
(Testemunha): O
primeiro-ministro respondeu.
(Mandela): O senhor
diria que as questões mencionadas na carta não são o tipo de coisa a que o seu
primeiro-ministro consideraria responder?
(Testemunha): O tom da
carta como um todo foi tomado em consideração.
(Mandela): O tom da
carta em que era exigida uma convenção nacional? De todos os sul-africanos?
Esse é o tom da carta? Esse é o tipo de coisa a que o seu primeiro-ministro
jamais consideraria responder?
(Testemunha): O tom da
carta determina se, e em que medida, o primeiro-ministro responde à
correspondência.
(Mandela): Gostaria de
expressar ao senhor que, ao não responder à carta, o seu primeiro-ministro fica
abaixo dos padrões esperados de alguém que ocupe tal posição.
Agora, esta carta,
prova 18, datada de 26 de junho de 1961, também endereçada ao
primeiro-ministro. Ela afirma:
"Refiro-me à minha
carta de 18 de abril de 1961, à qual o senhor não teve a cortesia de responder
ou de acusar recebimento. Na carta acima referida, informei ao senhor sobre as
resoluções aprovadas pela conferência do Conselho Nacional de Ação Africano em
Pietermaritzburg, em 26 de março de 1961, exigindo que seu governo convocasse,
antes de 31 de maio de 1961, uma Convenção Nacional soberana e multirracial
para produzir uma constituição não racial e democrática para a África do Sul. A
resolução da conferência, anexa à minha carta, indicava que se seu governo não
convocasse a convenção até a data estabelecida, seriam conduzidas manifestações
nacionais para marcar nosso protesto contra a república branca imposta
forçosamente a nós por uma minoria. A resolução indicava também que, além de
nossas manifestações, o povo africano seria conclamado a não cooperar com o
governo republicano ou com qualquer governo baseado na força. Já que seu
governo não respondeu às nossas demandas, o Conselho Nacional Africano, ao qual
a conferência confiou a tarefa de implementar suas resoluções, convocou uma
greve geral para os dias 29, 30 e 31 do mês passado. Como previsto em minha
carta de 30 de abril de 1961, seu governo buscou suprimir a greve pela força. O
senhor aprovou em regime de urgência no Parlamento uma lei autorizando a
detenção sem julgamento de pessoas conectadas à organização da greve. O
exército foi mobilizado e os civis europeus receberam armas. Mais de 10 mil africanos
inocentes foram detidos sob as leis de passe e assembleias foram proibidas em
todo o país. Muito antes do horário de abertura das fábricas em 29 de maio de
1961, oficiais de alta patente na polícia e sul-africanos nacionalistas
começaram a espalhar a deliberada mentira de que a greve havia fracassado.
Todas essas medidas não bastaram para derrotar a greve e nosso povo resistiu
magnificamente e nos deu apoio sólido e substancial. Trabalhadores de
escritório e operários, empresários da cidade e do campo, estudantes nas
universidades e nas escolas primárias e secundárias responderam à altura da
ocasião e registraram de modo claro sua oposição à república. O governo é
culpado de se iludir caso afirme que os não europeus não atenderam ao chamado.
Considerações de honestidade exigem que seu governo compreenda que o povo
africano que constitui mais de quatro quintos da população deste país se opõe à
sua república. Como indicado acima, a resolução de Pietermaritzburg determinou
que, além das manifestações nacionais, o povo africano se recusasse a colaborar
com a república ou com qualquer forma de governo baseada na força. Porque seu
governo não convocou a convenção, tornou-se imperativo que nós lançássemos uma
campanha nacional em larga escala de não cooperação com seu governo.
Restam-lhes duas alternativas. Ou aceitem nossas demandas e convoquem uma
Convenção Nacional de todos os sul-africanos para preparar uma constituição
democrática que porá fim às pavorosas políticas de opressão racial adotadas por
seu governo - e ao seguir esse curso e abandonar as políticas repressivas e
perigosas de seu governo, o senhor ainda pode salvar o país de deslocamento e
ruína econômica e de disputas e amarguras civis. Alternativamente, o senhor
pode optar por persistir com as atuais políticas, cruéis, desonestas e que
contam com a oposição de milhões de pessoas, no país e no exterior. De nossa
parte, desejamos deixar perfeitamente claro que jamais deixaremos de lutar
contra a repressão e injustiça e que estamos retomando a oposição ativa ao seu
regime. Ao tomar tal decisão devemos enfatizar de novo que não temos ilusões
quanto às sérias implicações de nossa decisão. Sabemos que seu governo uma vez
mais deflagrará toda sua fúria e barbárie para perseguir o povo africano. Mas
como o resultado da última greve já demonstrou, não há poder na terra capaz de
deter um povo oprimido determinado a conquistar a liberdade. A História pune
aqueles que recorrem à força e à fraude para reprimir as reivindicações e as
aspirações legítimas da maioria dos cidadãos do país".
(Mandela):Esta é a
carta que o senhor recebeu em 28 de junho de 1961?
(Testemunha): Não creio
que seja - não acho que deva ser definida como uma carta, para começar, e sim
como um acúmulo de ameaças.
(Mandela): O que quer
que seja, não houve resposta a ela?
(Testemunha): Não.
Outra testemunha a ser
convocada foi o suboficial Baardman, membro da seção especial da polícia de
Bloemfontein. Ele foi interrogado por Mandela.
(Mandela): Seria
correto dizer que a presente constituição da África do Sul foi aprovada por uma
convenção nacional na qual só os brancos estavam representados?
(Testemunha): Não sei.
Não estava lá.
(Mandela): Mas com base
naquilo que o senhor sabe?
(Testemunha): Não sei,
eu não estava lá.
(Mandela): O senhor
nada sabe sobre isso?
(Testemunha): Não, não
sei.
(Mandela): O senhor
deseja que este tribunal acredite que não sabe?
(Testemunha): Não sei,
eu não estava lá.
(Mandela): Permita-me
uma pergunta. O senhor não sabe que a convenção nacional de 1909 só tinha
representantes brancos?
(Testemunha): Não sei,
eu não estava lá.
(Mandela): O senhor
sabe que o Parlamento da União Sul-Africana está reservado aos brancos?
(Testemunha): Sim, com
representação para os não brancos.
(Mandela): Agora permita-me
fazer uma ou duas perguntas pessoais. Qual é seu grau de educação?
(Testemunha): Formei-me
no segundo grau.
(Mandela): Quando?
(Testemunha): Em 1932.
(Mandela): Em que
idioma o senhor escreve?
(Testemunha): Na minha
língua natal. (A testemunha quer dizer africâner.)
(Mandela): Percebo que
o senhor sente grande orgulho disso.
(Testemunha): Sim,
sinto.
(Mandela): O senhor,
sabe, claro, que neste país não temos direitos de idioma como africanos?
(Testemunha): Discordo
do senhor.
(Mandela): Nenhum de nossos
idiomas é idioma oficial, por exemplo. O senhor concordaria com isso?
(Testemunha): Talvez
não constem como oficiais no Código Legal, mas ninguém o proíbe de usar seu
idioma.
(Mandela): Responda à
pergunta. É verdade que neste país existem apenas dois idiomas oficiais, e eles
são o inglês e o africâner?
(Testemunha): Concordo
inteiramente. Para fins formais, são os dois idiomas oficiais, mas ninguém
jamais o proibiu de usar seu idioma.
(Mandela): É fato que
existem apenas dois idiomas oficiais neste país, ou seja, o inglês e o
africâner?
(Testemunha): Para
satisfazê-lo, respondo que sim.
(Mandela): É verdade
que o povo africânder do país lutou pela igualdade entre seu idioma e o inglês?
Houve época, por exemplo, em que o africânder não era o idioma oficial, na
história de muitas colônias, como a do Cabo?
(Testemunha): Sim,
concordo com o senhor inteiramente. Os africânder lutaram por seu idioma
constitucionalmente, mas não por meio de agitadores.
No terceiro dia do
julgamento, Mandela uma vez mais solicitou que o magistrado que presidia ao
julgamento se declarasse incompetente para tanto.
(Mandela): Quero
solicitar que o meritíssimo juiz se retire do caso. Como indiquei na
segunda-feira passada, respeito muito o meritíssimo e nem por um minuto duvido
de seu senso de equanimidade e justiça. Continuo, como disse na segunda-feira,
a fazer esse pedido com o maior respeito. Recebi informações no sentido de que
depois que a sessão de ontem foi suspensa, o meritíssimo juiz foi visto
deixando o tribunal em companhia do suboficial Dirker, da seção especial da
polícia, e de outro policial da mesma unidade. Como o meritíssimo juiz
recordará, o suboficial Dirker prestou testemunho no primeiro dia deste julgamento.
O promotor indicou que
ele voltaria a ser chamado, para depor sobre outro aspecto do processo. O
tribunal então me autorizou a reservar meu direito de inquiri-lo quando
voltasse a depor. O segundo membro da seção especial visto em companhia do meritíssimo
juiz foi avistado ao longo do julgamento ajudando o promotor público na
apresentação do caso contra mim. O meritíssimo juiz foi visto entrando em um
pequeno Volkswagen azul. Acredito que o meritíssimo se tenha acomodado no
assento da frente e que o suboficial Dirker estivesse ao volante. Por volta das
13h50min o meritíssimo foi visto retornando com Dirker e o outro policial da
seção especial.
Não sabemos, é fato,
que comunicação pode ter ocorrido entre o meritíssimo e o suboficial Dirker e o
outro policial da seção especial. Como acusado, não estive lá e não estava
representado. Para mim, esses fatos criam a impressão de que o tribunal está se
associando ao caso do Estado. Isso causa um substancial temor de que a justiça
esteja sendo administrada de maneira secreta. É um aspecto elementar da justiça
que uma autoridade do tribunal não se comunique ou associe de qualquer maneira
a uma das partes em conflito. Submeto que o meritíssimo juiz não deveria ter
agido dessa forma e devo portanto solicitar que se afaste do caso.
(Magistrado): Direi
apenas que não me cabe lhe fornecer explicações. Posso lhe garantir, como faço
agora, que não me comuniquei com esses dois cavalheiros e que sua solicitação
não será atendida.
Outra testemunha da
polícia foi o policial A. Moolla, membro indiano da seção especial, também
interrogado por Mandela.
(Mandela): O senhor
conhece a Lei das Áreas Grupais?
(Testemunha): Sim,
(Mandela): O senhor
está informado de que há o plano de estabelecer certas áreas para ocupação
pelos diversos grupos populacionais do país?
(Testemunha): Sim,
estou informado.
(Mandela): O senhor
sabe que isso despertou grande sentimento de oposição de parte da comunidade
indiana neste país?
(Testemunha): Bem, não
que eu saiba. Acredito que a maioria dos indianos estejam satisfeitos com a
lei.
(Mandela): Essa opinião
é sincera?
(Testemunha): É minha
opinião sincera, com base no que me dizem as pessoas com quem converso.
(Mandela): E o senhor
está ciente da atitude do Congresso Indiano da África do Sul quanto à lei das
áreas de grupais?
(Testemunha): Sim.
(Mandela): Qual é a
atitude do Congresso Indiano da África do Sul?
(Testemunha): O
Congresso Indiano da África do Sul é contra a medida.
(Mandela): E a atitude
do Congresso Indiano do Transvaal?
(Testemunha): Idem.
(Mandela): Também
combatem a medida?
(Testemunha): Sim.
(Mandela): E o
Congresso da Juventude Indiana do Transvaal?
(Testemunha): Também.
(Mandela): A Assembleia
Indiana da Província do Cabo?
(Testemunha): Sim. Bem,
não estou informado sobre a Assembleia Indiana da Província do Cabo.
(Mandela): Bem, pode
confiar quando afirmo que são contrários à medida. É evidente, além disso, que,
se a lei das áreas grupais for implementada em sua forma atual, grande número
de comerciantes indianos perderiam seus direitos comerciais em áreas declaradas
como áreas brancas?
(Testemunha): Sim, é
fato.
(Mandela): E grande
número de membros da comunidade indiana que no momento vivem em áreas que foram
ou podem ser declaradas como áreas para brancos teriam deixar suas casas e se
mudar para onde forem transferidos?
(Testemunha): Creio que
ficarão melhor do que...
(Mandela): Responda à
pergunta. O senhor está ciente disso?
(Testemunha): Sim,
estou ciente.
(Mandela): O senhor diz
que a classe comercial indiana neste país, que perderá seus direitos de
negócios, está feliz a respeito?
(Testemunha): Bem, nem
todos.
(Mandela): Nem todos. E
o senhor está dizendo que os membros da comunidade indiana que serão expulsos
das áreas em que vivem no momento ficariam felizes com isso?
(Testemunha): Sim,
ficariam.
(Mandela): Bem, senhor
Moolla, vamos deixar o assunto por aqui, mas permita-me acrescentar que o
senhor perdeu a alma.
Tradução de PAULO
MIGLIACCI